Frederico Moraes

Janeiro, 1998

 

Desde quando, por volta de 1990, decidiu trocar a escultura (na qual a cor sempre teve importância) pela pintura, Renata Cazzani, vem deba­ tendo e aprofundando basicamente três questões: grafismo, cor e es­ paço. Trata-se de uma abordagem simultânea e circular, e não crono­ lógica. Com efeito, estas três questões se interligam dialéticamente em sua pintura, ora buscando harmonias, ora extravasando tensões e conflitos.

 

De início, sobre um fundo de pequenas manchas-pinceladas de cores esmaecidas - terras ou ocres delicados - Renata insere um grafismo que tanto pode sugerir, numa primeira abordagem, resíduos de uma vegetação rasteira como a que encontramos no cerrado, como também rabiscos, graffitis e garatujas, um quase-texto de decifração desneces­sária. Trata-se, é claro, de uma paisagem inventada, ou melhor, construída no ateliê, mais pensada que vivida. Uma espécie de lnformalismo a sobrepor-se a cor, que é igualmente construída e não alusiva. Porém, à medida que avança em suas pesquisas, este grafismo se diversifica: é mais forte, nervoso e incisivo, resultando num emara­nhado de linhas curvas mas firmes ou é rarefeito quase apagado, o que não anula, ao contrário, reforça a cor e a mancha. Ou então cria suges­tões de arquiteturas que se perdem no longe da paisagem (ou melhor, da tela), a lembrar as últimas pinturas de Guignard, orientalizantes em suas brumas, névoas, noruégas. Mas em que pese a presença, ainda hoje, desses indícios figurativos, a preocupação de Renata é sempre a de integrar o grafismo à matéria pictórica e à cor, evidenciando-se, as­ sim, a dimensão planar da pintura. Até porque, em certos momentos, não se trata mais de um grafismo (desenho) que se sobrepõe à cor (pintura), como se algo tivesse sido raspado ou arrancado da matéria, presença fugidia de um tempo que se esvai, deixando suas marcas no muro da pintura, mas que se interpõe entre as camadas de matéria pictórica. Renata vela e desvela o grafismo na cor, para na verdade, re­ velar toda a potencialidade da pintura enquanto entidade autônoma.

 

Renata Cazzani não recalca a cor no colorido, como habitualmente ocorre na pintura clássica. Trabalha a cor na cor, agindo na/e com a própria materialidadem que está constituída. A cor como corpo: potente, aberta, em si mesma expressiva. Como Marc Devade, pintor e teórico da pintu­ra, ela estabelece uma dialética entre a cor e o pensamento, desenvolvendo "um processo de transformação que produz um salto qualitativo pela intervenção do gesto que a faz passar de quantidade a qualidade diferenciada". O gesto da artista expande a mateira colorida sobre a superfície da tela de forma cadenciada. Um ritmo, ou uma dinâmica, que, sem negar a dimensão subjetiva da criação, procura aten­der, ao mesmo tempo, às necessidades internas da pintura naquilo que ela tem de específico. Renata Cazzani constrói com a cor, pois está convencida, como Gleizes, que "toda modificação da cor engendra uma forma". Nos momentos de plenitude da cor ou de expansão da matéria pictórica o grafismo cede espaço à mancha, se desmancha. Submerge sob densas e extensas áreas de cor. Não são porem cores chapadas ou opacas, mas freqüentemente, transparentes e luminosas, animadas ora por um sopro lírico e envolvente tropicalidade, ora por uma densidade que beira o religioso e o sagrado, como nas telas em que evolui, numa mesma panorâmica, da cor-luz às sombras, dos azuis ou verdes ao negro mais pesado.

 

O espaço interno é modulado. Renata divide a tela em duas, três ou mais áreas de cor, apesar da inexistência de uma linha divisória preci­sa. Sua pintura esta mais para Rothko que para Mondrian. Embate en­ tre geometria e cor, entre construção e desconstrução, entre a neces­sidade de ordem e um esboço de desordem, entre rigor e improvisação

- ou quase. A passagem entre um módulo de cor e outro não se faz de modo brusco ou abrupto. Em algumas telas ainda se pode ver, na fron­teira entre os módulos e/ou planos de cor o resíduo da fita crepe, ou correndo por ali, um rio estreito, com suas margens irregulares, evi­denciando a metodologia de trabalho da artista, o processo de sua pintura. Mas Renata ainda quer manter a pintura em sua dimensão planar, e para isso distribui, estrategicamente, faixas de cor, especial­ mente nas extremidades da tela. Disso resulta uma espacialidade nova, aberta e dinâmica.

O que até recentemente eram módulos virtuais no interior da tela, nos trabalhos mais recentes, são o verdadeiro suporte de sua pintura. As faixas ou planos de cor se autonomizam para se constituir em novos quadros, que se organizam na forma de dípticos ou trípticos verticais ou horizontais. Da mesma forma, o que nas pinturas anteriores eram estreitas faixas a dividir os planos, agora emergem organicamente do muro ou painel. Eles nascem no hiato entre as telas e passam a integrar o significado de suas novas pinturas. Mais, a artista joga simulnea­ mente com estas virtualidades internas e externas, evidenciando a ri­queza de sua economia espacial.