Masao Kamita

Janeiro, 2007

Lírica Pictórica

Para quem se surpreendeu com a série de pinturas de 2003, a recente exposição de Renata Cazzani introduz uma nova descontinuidade. Se na fase anterior o que interessava era a expansão luminosa da forma no espaço, nas pinturas atuais são as qualidades pictóricas que ganham ênfase.

As cores assumem tons mais densos e auto-referidos, a pincelada definitivamente se libera e os formatos aumentam; alguns, inclusive, se verticalizam. Permanece, porém, a modulação geométrica dos planos de cor, obtida através de uma tênue moldura cromática delimitadora dos campos tonais.

Decorrente dessa entrega sem receios à práxis tradicional da pintura, ocorre uma significativa alteração técnica: o preenchimento da tela deixa de ser executado com esponja de espuma (que dava às telas precedentes uma superfície opaca e homogênea) para ganhar o desinibido toque do pincel, mais apropriado a uma fatura mais plástica, que se faz por sedimentação de camadas e privilegia a vibração tonal.

Nada intempestivo ou exasperado,nem tampouco embate matérico a crispar a superfície do quadro. Não, esse fazer pictórico segue a divisa fenomenológica dos atos reflexivos no instante de sua realização, o que faz com que o trabalho de pintura se desenvolva em tempo lento, acolhendo rearranjos constantes, perfazendo um processo em aberto, um exercício contínuo de resolução dos problemas na medida mesma em que são descobertos.

Curiosamente, o aumento da escala e do caráter pictórico, ao invés de acentuar a dimensão da exterioridade,tornou estas telas mais íntimas, incitando a um contato direto, uma afecção. Agora,o corpo (e não apenas o olho) passa a ser solicitado a perceber o todo da pintura, graças a essa intensificação física da superfície pictórica. Alguns procedimentos apontam nesse sentido, como a introdução de chassis espessos, a textura abrasiva e "popular'' nas barras, em contraposição aos tons graves e "eruditos" nos planos maiores, os encaixes e sobreposições de partes, tais são as tantas manobras para imantar o plano da pintura, deflagrando um efetivo corpo-a-corpo do quadro com o mundo.

Contudo, essa· pintura de manchas e densidades plásticas não recai no ilusionismo atmosférico. O postulado da absoluta frontalidade e atualidade do plano pictórico se mantém firme, graças, em grande parte, à grade modular que estrutura o plano. Mas, não nos iludamos: o problema de Renata Cazzani não se concentra na geometria. Tal como aponta a lição minimalista, o "traçado" geométrico não é anterior à tela, não a antecede como um ideal de justa proporcionalidade. Precisamente o contrário, ele é decorrente da condição física, literal da tela. É essa a razão pela qual surgem tangenciando as bordas do quadro.

Contudo, estas faixas geométricas que "emolduram" as áreas de cor dominantes surgemum tanto turvas, com limites imprecisos e manchas difusas, como se o amálgama pictórico que domina os planos adjacentes avançasse, contaminando a pretensa estabilidade dessas balizas geométricas. Em contrapartida,estas parecem reagir a tal expansão reafirmando sua individualidade por meio da cor lírica e da textura algo tosca, abrasiva,cuja aparência é semelhante à de objetos correntes, como as formas autóctones ou vernaculares que passam porprocessos existenciais de longa duração.

Esse jogo de medidas e contramedidas, entre formalização e liberação, entre ordem e espontaneidade, nos leva direto, creio, a questão principal que os trabalhos atuais colocam: o debate entre estrutura e pictórica, dois termos reconhecidamente em crise após tantas manobras modernas e contemporãneas, mas ainda originários, porque não decididos. É como se as telas de Renata Cazzani estivessem reatualizando os clássicos conceitos wõlfflinianos do linear e do pictórico, provocando, porém, uma incomum justaposição entre os termos, para assim resolver a paradoxal equação de uma estrutura viva e de uma pictórica estruturada.

A questão, bem entendido, é histórica, mas o dilema premente: a possibilidade da arte no real contemporãneo. Fazer uma pintura viva é impregná-la de vivência atual, assumindo na tela o incerto, o disperso e até o entrópico de nossa existência, sem, contudo, conformar-se com a descrença e o sem sentido dominante.

Eis a razão, a meu ver, do tônus existencial que essas telas exalam, na medida em que expõem a verdade temerária, mas incontornável de todo pintor: o drama da reinvenção da pintura a cada tela.